Lei do Transporte Zero de Pescado paralisa pesca no MT

A proibição de pesca pela piracema no Mato Grosso acabou em 1º de fevereiro, mas os cerca de 16 mil pescadores artesanais profissionais como Jonas Pereira dos Santos enfrentam neste ano uma lei do Executivo aprovada no ano passado na Assembleia Legislativa do Estado chamada de Transporte Zero que proíbe o transporte, comércio e armazenamento de peixes dos rios estaduais pelo período de cinco anos.

A lei permite apenas a pesca de subsistência, em que o pescador é autorizado a retirar peixe da água apenas para consumo próprio, em pequena quantidade.

O governo alega que a lei, apoiada em estudo de uma consultoria contratada pela Assembleia Legislativa, visa combater a pesca predatória nos rios e pode dobrar o turismo de pesca esportiva com previsão de atrair turistas e gerar empregos. O texto aprovado prevê uma compensação de um salário mínimo mensal por três anos aos pescadores que comprovarem exercício da atividade e fizerem o cadastro no sistema estadual.

Os pescadores, que afirmam nunca ter sido consultados sobre o tema, dizem que não há embasamento científico para sustentar o argumento de redução dos estoques pesqueiros e ressaltam que a lei impede que eles exerçam sua profissão.

O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio de duas Adins (Ação Direta de Inconstitucionalidade). Em audiência de conciliação no tribunal, no fim de janeiro, o governo do Estado se comprometeu a alterar partes da lei e mandar novo projeto para votação.

A proposta, enviada na quinta-feira, 1º de fevereiro, autoriza a pesca de cerca de 100 espécies, mas mantém a proibição de transporte, armazenamento e comercialização dos peixes cachara, caparari, dourado, jaú, matrinchã, pintado/surubim, piraíba, piraputanga, pirara, pirarucu, trairão e tucunaré pelos cinco anos.

“Não precisamos de esmola, a gente precisa trabalhar. As dez espécies que o governador (Mauro Mendes, do União Brasil) proibiu são as principais, as que sustentam o pescador. Com essa lei, a renda do pescador vai cair a zero. A piraputanga é o peixe mais cobiçado pelo sabor e pelo prazer de pescar. O pintado é o mais caro e o dourado é alvo do turista, mas sua pesca já está proibida há 12 anos”, diz o cearense Jonas Pereira dos Santos, que pesca no rio Cuiabá, em Poconé, no Pantanal, há 23 anos.

Ele afirma que, ao impedir o transporte e comercialização, a lei na prática extingue a profissão de pescador no Estado, além de impactar toda a cadeia que cerca a pesca, como os vendedores de anzol, chumbada, isca, postos de gasolina, padarias, mercados e outros comércios nas cidades pesqueiras.

A opinião de Jonas é compartilhada por pescadores das colônias Z1 de Cuiabá e Z 8 do município de Santo Antônio do Leverger, além da presidente da Associação dos Pescadores do Mato Grosso, Nilma Silva. Segundo ela, os pescadores das maiores colônias do Estado já decidiram por unanimidade não se cadastrar.

Jonas faz campanha frequente nas redes sociais pelo não-cadastramento. Primeiro porque o cadastro automaticamente descredencia os pescadores do sistema federal que paga o seguro-defeso durante a piracema, retira sua qualificação de segurado especial do INSS e impede sua aposentadoria.

Segundo, porque exercendo sua atividade eles ganham muito mais que um salário mínimo por mês. E terceiro, porque as exigências do cadastramento estadual são incompatíveis com a atividade do pescador e com sua formação, já que muitos são analfabetos ou semianalfabetos.

“A gente pesca em torno de 125 kg por semana. Dependendo do tipo de pescado, dá para ganhar até R$ 2 mil por semana ou R$ 1.500 quando a pesca está só razoável. Como vamos trocar isso por um salário mínimo mensal por família e ainda perder nossos direitos? pergunta Roseli Tania das Dores Souza, presidente da Colônia Z8, uma das maiores do Estado, e pescadora há 15 anos.

“Todo ano, quando abre o período de pesca, depois de se sustentar com 4 meses de seguro-defeso e com as economias guardadas, o pescador se prepara para voltar ao rio a fim de gerar sua renda. Neste ano foi diferente. Não dá para pescar e não transportar o pescado. Todos estão esperando uma solução do STF”, diz Sandra Maria de Oliveira Ferreira, da Colônia Z1.

Pescadores repudiam a lei

A presidente Nilma Silva diz que a categoria repudia 100% a Transporte Zero. “Essa lei foi criada por ignorância do governo, que em momento algum sentou com os pescadores ou representantes da cadeia para debater o assunto. Não se trata de prevenção ou preservação. O que destrói o meio ambiente no Mato Grosso não é a pesca e sim o mercúrio, o garimpo e outras questões entrópicas, que o governo não combate.”

Dona de uma lojinha de iscas, Nilma diz que não há pesca de grande escala no Mato Grosso porque já há leis restritivas e os pescadores são muito conscientes da necessidade de preservação do peixe que garante o sustento de suas famílias. Eles usam barco, vara, molinete e anzol. Nada de pesca de arrasto ou uso de redes.

Segundo ela, a pesca, além de sustentar as famílias dos 16.033 pescadores cadastrados no sistema federal, complementa o almoço e jantar de mais de 100 mil famílias no Estado, segundo estudo da Agência Nacional de Águas (ANA) feito em 2020. A agência contabiliza 131 rios no Mato Grosso. Os maiores são Paraguai, Xingu, Cuiabá, Araguaia, Guaporé e Aquidauana.

“Não é o pescador artesanal profissional que depreda o rio. São os clandestinos”, diz Jonas, que se define como guardião do rio Cuiabá e diz já ter afundado barcos de pescadores irregulares, apreendido redes e entregado para os órgãos de fiscalização. “Nós temos um grupo de 12 pessoas que percorre o rio 20 km para cima e 20 km para baixo para fiscalizar.”

O pescador que diz passar até 48 horas no rio enfrentando mosquitos e até onças por invadir o habitat delas afirma que há uma abundância de peixes por lá e é um absurdo tirar a profissão deles e privilegiar os pescadores esportivos, que praticam o pesque e solte.

"Essa atividade [pesca esportiva] é um crime. Cerca de 90% dos peixes que são fisgados e soltos não sobrevivem. Um minuto fora d’água e eles já ficam debilitados", afima Jonas.

Apoio

Além do governo do Mato Grosso, dos representantes dos pescadores e dos autores das ADIs, o relator do processo no STF, o ministro André Mendonça, convocou para a audiência de conciliação representantes dos Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e da Pesca e Aquicultura, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Segundo Nilma, todos esses órgãos federais são contrários à lei, assim como pesquisadores de universidades federais, agentes públicos do Ibama e ICMBio e instituições de pesca. Pesquisadores da Embrapa Pantanal também apontaram falta de embasamento científico à lei.

“Consideramos tal medida equivocada por não estar fundamentada em informações técnico-científicas, devendo ter sido iniciada mediante consulta aos órgãos competentes das esferas estadual e federal, que não reconhecem a ameaça da pesca no Estado do Mato Grosso ao ponto de ser instituída a proibição da atividade”, diz a nota assinada por pesquisadores.

Na época da aprovação da lei, em junho de 2023, o Ministério da Pesca também emitiu nota contrária, alegando que preterir a pesca artesanal em prol da pesca amadora e esportiva é uma infração à Lei da Pesca, que é federal.

“Compete ao poder público a regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, conciliando o equilíbrio entre o princípio da sustentabilidade dos recursos pesqueiros e a obtenção de melhores resultados econômicos e sociais, calculando, autorizando ou estabelecendo, em cada caso”, diz a nota técnica.

O secretário nacional de Pesca Artesanal, Cristiano Ramalho, disse na época que, ao ler as informações sobre a proposta, achou que eram notícias falsas. “Imagine você chegar para os advogados e dizer a eles que estão proibidos de advogar nos próximos cinco anos. E que nesse período vão ganhar um auxílio e cursos para mudarem de profissão. Seria um completo absurdo. Fazer isso com os pescadores é, da mesma forma, absurdo.”

Em 1º de fevereiro, Jocemar Tomasino Mendonça, diretor do departamento de Territórios Pesqueiros e Ordenamento do Ministério da Pesca, disse à Globo Rural que a lei trará um prejuízo muito grande aos pescadores, extinguindo sua atividade e trazendo perdas de tradicionalidade, seguridade social e o empobrecimento de mais de 15 mil pescadores.

A liberação de algumas espécies, segundo Mendonça, não tira necessariamente o prejuízo dos pescadores artesanais porque os principais produtos pesqueiros do MT são espécies migradoras. “Embora possam pescar, eles terão uma redução drástica nas capturas e em sua renda, o que pode inviabilizar a prática da atividade.”

O que diz o governo

Na terça-feira, 6 de fevereiro, a assessoria do governador Mauro Mendes disse à reportagem que a lei do Pescado Zero está em vigor e a tramitação do novo texto com liberação das 100 espécies vai seguir o rito normal da Assembleia Legislativa.

O governo disse que o STF já decidiu que os Estados têm legitimidade para editar leis sobre pesca, quando o tema for em defesa do meio ambiente, e que leis semelhantes já foram aprovadas e estão em vigor em diversos Estados e municípios do país, como Goiás, onde completou 10 anos em 2023.

Segundo o governo, ainda não há uma quantificação de quantos pescadores se cadastraram no sistema estadual. “Devem se cadastrar os pescadores residentes no Estado que comprovarem que a pesca artesanal é sua profissão exclusiva, principal meio de vida e única fonte de renda por pelo menos um ano, de forma ininterrupta, até o dia 20 de julho de 2023, data da publicação da Lei nº 12.197 (Transporte Zero).”

A assessoria também ressaltou que a atividade pesqueira continuará permitida aos povos indígenas, originários e quilombolas, que a utilizarem para subsistência.

Fonte: globorural.globo.com/ Foto: Rudimar Cipriani



Postado em 09-02-2024 à46 06:24:46

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